quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Sobre a exófora...

Naquela noite eu saí para pedalar um pouco mais tarde do que o de costume. A chuva forte que caiu já tinha praticamente passado e a cidade já começava a se preparar pra dormir. Peguei minha bicicleta e fui fugir da cidade.



No fim do asfalto, após as moradias simples e pequenas, cheguei a um imenso lixão a céu aberto. A rua não tem iluminação. Não tem asfalto. Nem nome tem. Mas tem gente. Vi, naquela hora da noite, perto do último poste de luz alaranjada, que alguma coisa se arrastava no meio da rua de lama e lixo. Parecia ser alguém. Com o avançar da minha bicicleta, percebi que usava roupas de frio surradas. Era uma pessoa. Ela puxava um carrinho de feira. Era uma senhora idosa que caminhava sozinha e muito lentamente naquela rua de lama e lixo. Apesar da recente chuva forte, persistiam fogueiras no meio do lixão. Duas coisas ficaram na minha cabeça: aquele cheiro forte de couro queimado e a lentidão do caminhar daquela senhora idosa.



Uma senhora, olhar cabisbaixo, dando um passo lentamente após outro passo, no meio da rua vazia. Mas pra onde aquela senhorinha estaria indo àquela hora da noite? Onde morava?
A bicicleta foi chegando perto, minha cabeça pensou tanto que parou de pensar. O único som que ecoava naquele lugar era o da catraca da minha bicicleta. Tac-tac-tac-tac. Me aproximei de forma que não a assustasse. Olhei bem pra ela, esperando que ela me olhasse e lhe disse um “boa noite”.
Ela continuou seu ritmo lento. Parecia não estar ali. Será que me ouviu? Nem ergueu a cabeça. Não mudou a expressão do rosto sem expressão, no meio da noite, no fim da cidade.  Eu também não tive reação, apenas passei. Quando olhei pra frente apenas ouvi ela me dizer: “É um trovão por dentro”.



Não falei mais nada. Não parei. A bicicleta continuou o seu tac-tac-tac e entrou na escuridão. Liguei minha lanterna e continuei meu caminho. Que estranho. Que palavras estranhas. Durante toda aquela trilha não pensei em outra coisa. Pensei nas palavras e naquela cena. Será que essas palavras foram apenas devaneios de uma pessoa que teve sua lucidez roubada? Será que fariam parte de um enigma, mensagem cifrada? Mas meu pensamento se fixou na tentativa de compreender a relação da cidade com aquela senhora.
Como na maioria das vezes eu pedalo sozinho, então eu não encaro o pedalar como um esporte e sim como um exercício mental. Vou andando por aí, vendo coisas e pensando coisas. Pra isso, tudo fora da cidade é ideal.



Pra mim, a cidade é a caixa de ressonância de todos os traços humanos. E, no meu entendimento, o traço mais fundamental de qualquer relação humana é a hostilidade. Qualquer relação humana é previamente hostil. Imagino que mesmo relações e sentimentos humanos agradáveis possuem raízes na hostilidade. E assim, qualquer cidade potencializa, em primeiro lugar, a hostilidade.



A cidade é o espaço irracional onde as patologias psicológicas são sacralizadas, legalizadas e firmadas entre as pessoas, que se aglomeram e se hostilizam mutuamente, porém observando determinada medida. Epidemia de gente. Para os cidadãos, o mundo inteiro consiste nas cidades. O espaço entre elas consiste no vazio, uma reserva técnica que, através da linha do tempo, será deglutido pela cidade. Parece que na equação da felicidade, quanto mais feliz, menos cidade. As cidades tinham tudo para serem legais. Mas são sufocantes.



Fico imaginando na história que aquela senhora poderia ter. "É um trovão por dentro". Será que sofre? Será que sente seu sofrimento? Houve escolhas? Merecimento? Opções. Acasos, destinos. Causas e efeitos. É assim que a cidade pensa: em causas e efeitos. Naquele mesmo lugar há várias outras pessoas e outros bichos, de todas as idades e várias histórias. O ruim não é a rua ser de lama, sem luz e principalmente sem nome. O problema é que, mesmo existindo tantos nomes, haja ainda aquelas ruas invisíveis.