sexta-feira, 29 de junho de 2012

Sobre a hipsografia...


"Serra da Boa Esperança, esperança que encerra
No coração do Brasil um punhado de terra
No coração de quem vai, no coração de quem vem
Serra da Boa Esperança, meu último bem"
(Lamartine Babo)



Tenho uma crença: não há jeito melhor para se conhecer um lugar do que percorrê-lo a pé. Saí cedo de casa. Meu objetivo era seguir o trecho ferroviário da Serra da Bucãina/Morro da Mesa, que fica no município de Araguari-MG, próximo à divisa com Goiás. Esse trecho, de construção onerosa e operação delicada no vale do rio Paranaíba, é considerado um dos fatores mais importantes para a desistência da Mogiana em chegar até Catalão. A companhia preferiu não prosseguir além de Araguari. Esse trecho de topografia difícil acabou sendo construído pela Estrada de Ferro Goyaz (EFG) nos primeiros anos da década de 1910, cerca de 15 anos depois da chegada da Mogiana em Araguari.




Na década de 1980 uma nova linha foi construída a cerca de 15km a leste, e essa linha velha acabou sendo arrancada. O mato cresceu, o acesso se tornou difícil e tudo lá ficou esquecido. Meu objetivo era descer essa serra por onde os trilhos desciam. Eu já tinha tentado fazer isso antes, mas o trecho crítico mede cerca de 9km e fica a quase 40km de Araguari. É muito demorado para ir a pé (um total de 52km só de ida) e de bicicleta pelo leito não é mais possível descer, pela altura do mato, quantidade de valetas de escoamento, queda de barreiras, erosão de aterros, etc. De qualquer jeito ia precisar de tempo de sobra, porque não sabia o que iria encontrar e não tinha notícia de ninguém que tinha feito o mesmo. Até que em 2010 o feriado de 7 de setembro caiu numa terça e consegui “emendar” a segunda. Eu tinha que ir e voltar em 4 dias e assim achei que o tempo daria com sobra.




Lá fui eu, sozinho com mochila, panelas, barraca, etc. A antiga estação de Araguari é o quilômetro zero da EFG. O distrito de Amanhece fica no quilômetro 15, Ararapira no quilômetro 30. O trecho de serra mais pesado começa no quilômetro 38 (lá tinha uma estação com esse nome) e o final da serra mais forte fica no quilômetro 47, onde havia a estação “Horto Florestal”. A partir de lá a ferrovia continuava numa descida mais suave até na estação Engenheiro Bethout (Bitú), km 52, às margens do rio Paranaíba, divisa com Goiás. Desse trecho centenário apenas os primeiros 2,5km ainda existem, ameaçados na área urbana de Araguari. O restante foi erradicado.




Para poupar tempo e esforço físico decidi pular o trecho inicial de Araguari até Amanhece porque esse eu já conhecia muito bem. E de Amanhece em diante eu iria a pé, passando exatamente onde o trem passava. Na metade da manhã cheguei na saída de Araguari para Amanhece e logo ganhei uma carona. Em Amanhece aproveitei para me abastecer de água, extremamente necessária no seco setembro do cerrado. Comprei 2 litros de suco de laranja para ir bebendo no caminho. Mochila cheia e pesada, pé na estrada.




Em Amanhece a ferrovia tomava a direção Oeste para chegar em Ararapira. O leito ferroviário segue paralelo à uma estrada rural, mas eu fui andando exatamente pelo leito, coberto de mato e cheio de buracos, pulando cercas e demais obstáculos. As britas (lastro) eram minha referência, quando havia.



Conforme fui avançando, a Serra do Vale do rio Paranaíba (Serra da Bucãina/do Morro da Mesa) foi aparecendo e oferecendo um panorama muito bonito, apesar da secura da paisagem nesta época.



Aliás, tão seca que 8km depois eu já tinha bebido todo o suco. Apesar da sequidão, sentida principalmente no respirar, e do aspecto de sofrimento das plantas, é justo nessa época que o cerrado dá suas flores mais bonitas, cheirosas e coloridas. Havia muitos pequis floridos, ipês, etc.



Mais ou menos na metade do caminho para Ararapira a estrada de carros corta caminho para a direita, enquanto a ferrovia descrevia uma grande curva, para reencontrar a mesma estrada 2,5km adiante. É um trecho de vegetação mais fechado, mas no geral sem grandes dificuldades.




Um pouco a frente encontrei os alicerces de uma construção ferroviária (uma parada? uma casa de turma?) e os pilares de uma caixa d’água para abastecimento das locomotivas. Em um deles ainda há a inscrição da Diretoria de Obras da EFG, com a data de 25/02/54 (pouco mais de um mês antes da traumática transferência da sede da EFG de Araguari para Goiânia).




Já chegando no povoado de Ararapira, a ferrovia torna a se distanciar da estrada, evitando uma subida. De novo, segui pelo leito ferroviário.




Ao chegar em Ararapira no começo da tarde do sábado, o sol forte, o ar seco e o peso da mochila fizeram sentir o cansaço. A estação foi demolida na década de 1980, restando apenas a plataforma e escadaria. Parei um pouco pra descansar numa venda antiga. Lá algumas poucas pessoas do lugarejo bebiam pinga e petiscavam salame, gastando a folga da tarde de sábado. Alguns me olhavam com cara curiosa. Puxei papo, perguntei algumas coisas, respondi outras. Infelizmente não pude conversar muito. Me abasteci com água, artigo ainda mais raro no trecho a frente. Ararapira foi o último lugar onde eu vi alguém, até o fim do passeio. Comprei uma lata empoeirada de salsicha e continuei o caminho.




Mas assim que saí da venda algumas crianças me cercaram e começaram a perguntar se eu iria saltar de pára-quedas. Achei graça e disse era só uma mochila grande. Pensei: de onde elas tiraram isso? Mas alguns meses depois eu descobri que um piloto havia morrido praticando paraglider lá. E vi que realmente aquela região é muito usada por praticantes desse esporte. Atravessei um colchete e deixei as crianças curiosas e o povoado pra trás. O leito vai rumando ao norte, agora sem muitas estradas pelas vizinhanças. Ele segue por outros caminhos, tangenciando o vale do rio Paranaíba. As paisagens são bonitas demais e dá pra imaginar a admiração das pessoas ao vê-las a partir da janela dos vagões.




Caminhando, ouvi uma explosão, som bem parecido com um trovão. Fiquei observando até entender que, pela localização da poeira branca que se elevou no horizonte, foi uma detonação na mina de calcário, há mais de 10km de distância. São comuns. Continuei caminhando pelos pastos onde o trem passava. Vez ou outra, árvores de grande porte denunciam os 30 anos em que o último trem passou.




A tarde foi acabando e antes de chegar no antigo “Trinta e Oito”, a ferrovia passava por alguns cortes mais ou menos profundos.



Cheguei ao local de acampamento junto com o pôr-do-sol. Era uma antiga vila ferroviária, com várias casas e instalações operacionais. Elas serviam de apoio aos trens que iriam descer a serra e recebiam os trens que acabavam de subir. Foram todas demolidas, restando apenas alguns alicerces perdidos no meio do mato.




Muito cansado, joguei a mochila e corri pra aproveitar o pôr-do-sol, que no cerrado parece ser extremamente colorido. Todas essas fotos foram tiradas no dia 4 de setembro de 2010 neste local.




Assim que o sol se pôs, corri para aproveitar o final da claridade para montar logo a barraca, exatamente sobre o antigo leito.




Não há água para tomar banho. E para beber, tive que me contentar com a que me restava. O calor forte do dia seco foi aos poucos se transformando em frio. Comecei a sentir dor de cabeça, coisa muito rara. Desisti de cozinhar, entrei na barraca e jantei a lata de salsicha. Eu estava me sentindo muito incomodado, mas não sabia com o quê. A noite estava muito silenciosa, sem nenhuma brisa ou som de bicho. Não conseguia dormir, até que ouvi algo se arrastando, de forma cadenciada. Cada vez mais perto. Prestei muita atenção, quase sem respirar. Arrastava, parava. Arrastava, parava. Parecia algo pesado. Em alguns momentos, o som vinha de um lado da barraca. Depois, o som vinha de outro lado. Achei melhor não sair para ver o que era, estava muito perto. Normalmente eu teria saído. O som continuou por mais de uma hora, tempo em que fiquei tentando equilibrar o medo e a curiosidade. Me convenci que de dia era só observar os rastros e entenderia o quê estava arrastando o quê. Em época de poeira tudo forma rastros. Dormi e, sugestionado pelo barulho, sonhei com uma pessoa atropelada pelo trem, que não tinha mais corpo da cintura pra baixo, que se arrastava ao redor da minha barraca. Eu nem tinha alcançado ainda o trecho de serra e já estava passando muito medo.


(Continua na próxima postagem, Sobre o bulício...)